Sempre que falamos sobre qualidade, alguns termos passam pela mente de muitos que já passaram por programas de qualidade ou obtiveram uma certificação: papelada, burocracia, regras, normas, procedimentos.
Isso é fruto de uma inversão promovida de maneira deliberada e que causou danos quase irreparáveis à busca da qualidade. Essa inversão é trocar o “Porquê”, pelo “Como”.
Muitas empresas, na ânsia de conseguir um certificado que abrisse portas ou a pedido de algum cliente criterioso, ao invés de começar a busca pela qualidade, abordando o porquê da sua importância, optaram por iniciar a conversa com “como” implantar a qualidade na organização e essa foi a inversão.
Em seu famoso livro, Comece pelo porquê (2009), Simon Sinek fala da força que um porquê tem para mobilizar as pessoas e essa poderosa força, muitas vezes, não é utilizada. Pessoas passaram a perseguir a qualidade seguindo os “métodos, normas, procedimentos” sem entender o real motivo que os levava a isso. E essa inversão: primeiro o “como”, depois o “porquê”, levou-nos a uma distorção quase irreparável: a burocracia, o medo e os motivos errados.
Eis, então, que temos uma empresa certificada em uma norma que até cumpre os requisitos dela. Mas na base da cenoura (recompensas) ou do açoite (castigos). Acontece que buscar qualquer coisa dessa forma torna-se pouco efetivo, pois demanda uma fiscalização que gera mais esforço. Daniel Pink explica isso no seu livro, Motivação 3.0 (e deixa claro que motivar pessoas de maneira extrínsecas com recompensas ou coerção é infinitamente menos efetivo do que despertar uma motivação intrínseca, ou seja, algo que o mobilize de dentro para fora, que faça sentido e que tenha propósito para o indivíduo.
Para fazer sentido para a pessoa, para algo ter significado ou propósito, é fundamental um “porquê”, que foi abandonado na busca pela qualidade quando consultores, empresários, analistas e gerentes que muitas vezes, bem intencionados, começaram a aplicar fórmulas para a busca da qualidade na empresa, sem despertar a consciência dos reais motivos dessa busca nas pessoas.
Nesse cenário, a qualidade passou a ser sinônimo de papéis, burocracia, regras e normas. Quando não cumprida, existia punição, quando a qualidade era atendida, alguma recompensa, logo, ela passou a ter uma utilidade e deixou de ser um atributo de valor, uma virtude.
Ressignificando a qualidade
A qualidade, como dito nesse contexto, foi uma palavra um tanto quanto vilipendiada, avacalhada, judiada e simplificada. Ela não mudou, mas o entendimento de muitos para ela, sim. Por isso é preciso ressignificar esse termo.
Para isso, é preciso, também, exercitar um novo olhar para a qualidade, é hora de esquecer a sua função (como fazer melhor algo) e pensar nela como um valor (um ideal a ser perseguido). Ao buscar a qualidade e vivê-la como uma VIRTUDE e não buscá-la como algo FUNCIONAL, ela inevitavelmente vai se aproximar da excelência e vai ser encarada de outra forma. A qualidade observada enquanto um valor, algo maior, é uma filosofia, algo a ser buscado no dia a dia. Ela deixa de ser usada “para conseguir algo” e, agora, é perseguida pela convicção que isso é uma virtude que prega que qualidade é o melhor que posso oferecer e que se pode buscar nas condições que se tem.
Essa qualidade, abordada com esse olhar, é praticamente um sinônimo de excelência, uma vez que é o melhor que eu posso querer agora e, com certeza, é menos que o melhor que eu posso buscar amanhã. Veja, a qualidade deve sim cumprir as expectativas e requisitos, mas isso acontece no percurso. Quando vivida como uma virtude, ela é importante porque é o certo a ser feito e, ainda, como bônus, cumpre os requisitos.
Essa ressignificação da qualidade entrega para as pessoas que atuam na empresa uma qualidade com propósito, que busca muito mais que normas e que inspira uma busca pela excelência.
Sobre a esperança
Excelência é um combustível natural para cultivar a esperança. Isso porque não é fácil ter esperança. Vamos lá, não é o caso do pensamento de que o mundo é cor de rosa, que tudo é lindo ou que nada vai dar errado. Pelo contrário, é um pensamento de quem sabe que “apesar dessa bagunça que está aí” amanhã pode ser melhor. Mas, para melhorar, é necessário ação.
Cultivar a esperança e, principalmente, torná-la realidade, se faz por meio de ação: de atuação deliberada, direta e direcionada. É colocar a mão na massa para melhorar o amanhã que se espera. É claro que quando falamos da humanidade, não dá para resolver isso rápido. A humanidade tem muitos problemas, mas é possível que cada indivíduo comece a resolver a sua própria humanidade na rotina com as pessoas que estão à sua volta.
Por isso que a sugestão é trocar o “salvar a humanidade” por “salvar minha humanidade”, princípio no qual cada um faz o que pode no seu entorno para que a esperança cultivada se torne cada vez mais próxima e real.
Nós, seres humanos, temos sim muitos defeitos, sabemos que muitas vezes erramos feio, perdemos a paciência, atropelamos as coisas, falta empatia, às vezes amor, ou seja, é inegável toda a nossa imperfeição. Mas pensar na excelência, não em perfeição, torna a experiência de vida mais fácil. O cidadão não precisa ser o Mahatma Gandhi, mas ele pode ser hoje melhor que foi ontem. E pode trabalhar para amanhã poder ser alguém melhor que o de hoje.
Existem sim tropeços, mas pensar em melhoria contínua, em excelência, é um ótimo caminho. Isso traz esperança porque motiva, direciona e instaura, ainda, um sentimento de que é possível avançar.
Um caso real sobre o porquê da excelência
Não faz muito tempo, um colaborador meu me convidou para uma conversa que começou assim: “Hoje, quero saber de onde foi que veio esse negócio de qualidade que a gente faz aqui”. Muito direto e reto na conversa.
Eu procurei explicar, falei da melhoria contínua, que acredito que a qualidade é o que pode mudar as empresas e o país. Mas, a cada resposta, ele torcia o nariz e dizia: “não é isso. O que mais?”
Isso foi aumentando e o tom da conversa me deixava irritado, mas eu estava gostando da direção que papo tomava. Eu estava cada vez mais animado, ele estava escavando coisas que eu pensava que eu nunca havia verbalizado ou mesmo racionalizado daquela forma, até que, em um momento, no auge da minha eloquência e já sem muita paciência, eu disse:
Sabe o que é meu? Eu já fui pobre, cheguei aqui não tinha onde cair morto. Não quero entrar nessa de contar história triste, mas a única coisa que me tirou do enrosco que eu estava foi a qualidade, foi a excelência, foi meu inconformismo com o status das coisas e achar que elas devem ser melhores sempre.
E mais, nós somos o único animal que acorda de manhã, e pensa: “hoje eu vou ser melhor que ontem. Hoje, eu vou conseguir mais que ontem, hoje vai.” Os macacos não pensam: “hoje, vou comer bananas mais gostosas que ontem” ou os que estão no zoológico, “hoje jogarei meu cocô em mais pessoas, acertarei mais gente, vou aumentar minha performance”; os cachorros pensam: “hoje vou sair, latir mais alto e cheirar mais traseiros que ontem”.
Esse papo de ser melhor é com a gente. É uma caraterística do ser humano. É algo que nos diferencia dos outros animais. A qualidade, a excelência, a melhoria contínua são dádivas, são coisas que nos tornam únicos e eu quero buscá-las. E eu quero ir além: além de buscar isso, para mim, eu quero apoiar pessoas e empresas a buscarem isso também.
Depois que terminei, ele me olhou e falou: “agora sim. Valeu.”
Acabou a reunião, eu estava alegre porque nem eu tinha pensado nisso com tanta clareza. Além disso, depois do papo, fiquei mais perto do meu propósito. Minha mente estava mais limpa e eu tinha uma razão mais sublime para essa minha paixão pela qualidade, essa loucura de buscar o melhor todo dia.
Passar aperto falando das suas intenções e ações, respondendo um inquérito, coloca qualquer líder na berlinda. Pode parecer desconfortável, mas traz aprendizados ímpares, que, talvez, sem essa abertura, não viriam.
Separando-nos dos animais
Por isso, a excelência tem o papel de nos levar para um próximo nível, de nos movimentar na direção correta. A qualidade vivida dessa forma separa a gente dos animais, é o que nos distingue dos macacos.
Para um macaco, o requisito é banana. Para nós, era banana, hoje já é banana split ou Banoff. Amanhã será possível comer banana flambada em marte. Sempre querendo algo novo, evoluindo, cultivando essa busca incansável pela melhoria, a excelência.
Quando paramos para pensar numa razão para a excelência, me vem à mente nada menos que a evolução de cada um, do ser humano, das empresas e da sociedade. Esse é um belíssimo porquê para a excelência.
Referências:
SINEK, Simon. Comece pelo porquê: Como grandes líderes inspiram pessoas e equipes a agir. 1ª ed. Editora Sextante. Rio de Janeiro. 2018.
PINK, Daniel. Motivação 3.0: Os novos fatores motivacionais para a realização pessoal e profissional. 1ª ed. Atla Books. Rio de Janeiro. 2012.